Crianças pequenas precisam do cuidado afetivo de pessoas capazes de lhes dar suporte a qualquer momento. Sempre. Mesmo quando estão brincando livremente, sem o compromisso das atividades pedagógicas, elas dependem da presença, do olhar e/ou da proximidade de um cuidador, de acordo com cada faixa etária. Deixá-las brincar livremente não significa simplesmente deixá-las por conta própria.
É importante lembrar disso, sempre, porque há uma tendência de ir largando a molecada à medida que bate o cansaço natural da rotina com os pequenos. Soma-se a isso um discurso que estimula mães & pais a “deixar as crianças crescerem” ― lindo, mas que pode gerar uma baita confusão quando é usado equivocadamente pra justificar atitudes reaças do tipo tem-que-sofrer-pra-aprender.
Esse discurso vem ganhando apoio de estudos como o que Peter Gray publicou em setembro/2023, em parceria com David Lancy e David Bjorklund. Traduzindo, o título seria “declínio das atividades independentes como causa do declínio do bem-estar mental das crianças”.
É preciso explicar: Gray é um defensor do livre-brincar, e suas pesquisas em Psicologia Evolutiva contribuíram para que o direito ao brincar esteja hoje nas políticas públicas para a infância em vários países. É um crítico feroz do excesso de atividades pedagógicas para crianças e uma fonte de estatísticas sobre a ansiedade e a depressão que assolam alunos de escolas de “alta performance”.
Seu artigo defende o livre-brincar, como sempre, mas exagera no espírito “let grow” (que inspirou o nome de sua ONG). O problema está em afirmar, por exemplo, que só há livre-brincar quando não tem adulto por perto. Essa formulação radical é feita a partir da leitura ― enviesada ― que Gray faz de um estudo conduzido por Justine Howard e Karen McIness, em 2012, com crianças de 3 e 5 anos.
Para as crianças, brincar é não ter um adulto na roda, dirigindo ou controlando a atividade. Mas em nenhum momento a ausência de adultos é uma exigência. Alguém pode cuidar da galera sem interferir, atentando para riscos maiores e respondendo àqueles que lhe pedem algo, ficando por perto ou a uma distância que permita ver quando surge algum perigo.
Assim a brincadeira pode ser um momento de criação, construção de relações, vivência de conflitos, resolução de problemas, experiência de dores, tédio e prazeres. Além de ser fonte direta de satisfação, esse livre-brincar fortalece os pequenos para os desafios da vida. Cabe ao adulto cuidar desse ambiente de experiências sem atrapalhar.
No estudo, Howard e McIness sugerem justamente que os adultos aprendam a cuidar sem interferir na brincadeira. Jamais sugeriram que crianças de 3 e 5 anos brinquem fora do alcance de um cuidador. Trata-se de um ponto de equilíbrio entre duas condições fundamentais para os pequenos: a liberdade para brincar e o cuidado afetivo que permite e sustenta o exercício dessa liberdade de experimentação, imaginação e criação.
O exagero de Gray é perigoso por afirmar que essa falta de “atividades independentes” dos pequenos seria uma das “causas primárias” da epidemia de ansiedade e depressão entre crianças e adolescentes, que foi declarada emergência nacional nos EUA em 2021. Entre essas atividades independentes estariam o livre-brincar, ir e voltar da escola sozinho ou com amigos, enfim, fazer coisas com “algum grau de risco e responsabilidade” longe de adultos.
Seu argumento até faz sentido. Nos últimos 60 anos a saúde mental de crianças e adolescentes vem declinando, assim como vem escasseando o tempo livre pra curtir, descobrir, conhecer, enfrentar desafios e brincar na frente de casa ― fruto do avanço da urbanização, da violência e das agendas de atividades extra+escolares abarrotadas. No final da década de 1980, nos EUA, crianças de 9 a 11 anos eram mais ansiosas do que pacientes psiquiátricos em 1956 (Twenge, 2000).
Mas Gray erra ao concluir que isso ocorreu porque deixamos de ver as crianças como “competentes, responsáveis e resilientes” (até os anos 1970) e passamos a dedicar-lhes mais “supervisão e proteção” (a partir dos anos 1980). Faltam evidências. Ele insinua essa relação causal usando ― também de modo enviesado ― um estudo de Julia Vigdal e Kolbjørn Brønnick (2022) que relaciona o estilo parental superprotetor e controlador com a ocorrência de ansiedade e depressão.
Há dois problemas aí: (1) os autores não conseguiram comprovar a relação de causalidade, e (2) Gray força a barra ao misturar proteção e supervisão com superproteção e controle. É bom lembrar: a proteção do cuidado afetivo fortalece, e não enfraquece emocionalmente as crianças. Já as manobras dos adultos para evitar que elas enfrentem a frustração, que sintam raiva e expressem sua revolta quando frustradas, essas sim atrapalham muito os pequenos na construção da capacidade de lidar com a adversidade e com os perigos.
Gray não é doido, não está propondo que crianças de 8 anos andem sozinhas pra escola hoje. Sua ONG sugere arranjos comunitários para oferecer espaços seguros para as crianças. Mas o discurso que ele quer espalhar entre mães & pais pode se tornar uma licença “científica” para os adultos menos dispostos a cuidar dos pequenos em sua desconfortável ebulição de sentimentos. É fácil ligar o se-vira-moleque e abandoná-los afetivamente em “atividades independentes”.
No caso de crianças maiores, o mote “deixe crescer” soa como música para embalar ideias retrógradas. Enaltecendo o trabalho de crianças de 11 anos que, num passado romântico, entregavam jornais e faziam babysitting pra ganhar uns trocados, ele alimenta o discurso do tiozão rico que põe seu filho em escola de tempo integral e quer que o menino pobre trabalhe para formar o caráter e se tornar merecedor de algum sucesso.
Deixá-los crescer, meeesmo, é oferecer oportunidades e suporte para lidarem com sentimentos e informações, para viverem experiências emocionais e intelectuais diversas, desafiadoras e enriquecedoras. Isso acontece pelo esforço dos adultos, com cuidados adequados a cada idade, respeitando suas necessidades de proteção e exploração, sem abandoná-los à própria sorte.
David Moisés e Angela Minatti
Leia também no livro:
Só brincando é que se cresce .......... p.92
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